EXPERIÊNCIA E ARTE
Mário Pedrosa
Nessa altura do dia, um sentimento de cansaço aparece como para
insinuar à crítica a inutilidade de seus esforços para julgar, para
averiguar o valor das atividades artísticas.
Há dois salões abertos no Rio, ambos com algumas coisas dignas de
ser vistas e uma porção de coisas incolores, neutras.
A maioria dos artistas que pintam, que exculpem ou gravam poderia deixar de
pintar, esculpir ou gravar sem prejuízo para ela nem para a arte. Toda essa
gente poderia tratar de outra coisa, que não faria diferença. O Brasil é um país
jovem, em crescimento, mas onde a mentalidade que nos domina sofre de artritismo
ou padece dos males de uma senilidade precoce. Oh terra de gente moça velha!
O brasileiro na vida não tem caráter, e Macunaima é o seu símbolo:
e, nas artes, não tem Personalidade. Contem-se, entre as centenas de sujeitos
que expõem no salão de cima e no salão de baixo do Ministério da Educação, os
que dizem alguma, coisa de seu. Quantos restam? Talvez uma meia dúzia. Não se
exija, porém, tanto deles. Reduzamos as nossas ambições, e perguntemos
moderadamente: quantos, entre todos esses expositores, ao rabiscar um papel, ao
dar pinceladas na tela. ao amassar o barro,estão realmente passando por uma
experiência?
E falando em experiência, é Rainer Maria Rilke que nos vem à mente
quando numa de suas cartas escreve: "Versos não são como tanta gente imagina,
simplesmente sentimentos, são experiências". E o grande lírico lúcido descreve
então o quanto de experiência é necessário para escrever "um único verso". É
preciso, comenta ele, ver muitas cidades, homens e coisas, conhecer os animais e
o vôo dos pássaros e o gesto das flores quando se abrem pela manhã: voltarem
pensamento aos caminhos das regiões desconhecidas, aos encontros inesperados, às
separações já de longe previstas, às doenças da infância carregadas de profundas
e graves transformações, aos dias fechados, ou de sol, às manhãs de vento, ao
mar, às noites de travessia de fuga, etc ., e isso tudo ainda não basta. É
preciso também as memórias das vivências passadas, e mesmo essas não bastam.
Pois é preciso também saber esquecê-las quando são muitas, e ter-se a imensa
paciência de esperar que voltem novamente.E quando então tudo tiver retornado
dentro de nós, como o sangue, a brilhar e a gesticular sem se distinguir de nós
mesmos, só então, assinala o poeta, pode acontecer que na hora mais rara a
primeira palavra de um poema se levante no meio daquelas experiências e delas
prossiga.
A descrição do processo poético de Rilke que se coagula em torno da
experiência, poderia servir de paralelo à descrição do processo plástico.
Quantos dessa gente ataviada em mandar quadros para todos esses salões,
nacional, municipal, moderno, geral, clássico, suburbano, estadual, tiveram
sequer um vislumbre daquela "hora mais rara" de que fala o poeta?
Desçamos a um plano mais corriqueiro, mais terra a terra, da
experiência criadora: quantos ao pintar estão realmente fazendo uma simples
experiência "individual"? Uma experiência que outros não fizeram ou não poderão
fazer em seu lugar? Experiência que não é aprender as regras impessoais de um
ofício ou os movimentos necessários a guiar um automóvel? Quantos ao acabar um
quadro ou uma escultura têm a sensação ou o pressentimento vago, indefinido ou
preciso, de que uma nova idéia, ou melhor uma nova vivência já está aparecendo
como um fantasma por trás da obra feita? Quantos sentem ou percebem, mesmo
instintiva ou inconscientemente, a fatal continuidade de todo trabalho criador?
Diante de toda obra — mesmo ruim — mas que seja de fato resultante
de uma experiência pessoal, logo surge por trás dela ou em torno dela, como que
uma aura, uma sombra a sugerir ou evocar o fantasma, a idéia, a hipótese de algo
que continua.Quantos críticos e julgadores olham, entretanto, por trás do quadro
ou em torno dele para sentir a vibração do ar em volta? Os vestígios de novo
drama que começou a formar-se ali mesmo, denotando assim ser a obra algo de
vivo, e, por isso mesmo, dotada da terrível faculdade de reproduzir-se, de
continuar? (...)
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Entretanto, há no salão uma vocação escultórica violenta, embora
reprimida, em Franz Weissman que de Belo Horizonte mandou uma figura
à Moore, mas também uma figura sentada. Em torno desta há. Uma
sugestão de continuidade. O escultor quer substituir os cheios pelos
vãos, numa tentativa de representar espacialmente e não
volumétricamente, que é o grande problema da escultura moderna,
raramente abordado em nosso país, e que tão fundo fere a imaginação
plástica de nossos dias, fascinada pela conquista de novos espaços.
(...)
A finalidade precípua de um salão "moderno" está, segundo
pensávamos, em descobrir os talentos novos e em estimular os
esforços mais sinceros, corajosos e autênticos. Num país como o
nosso, ater-se à rotina ou ao costumeiro, é retroceder.
Tribuna da Imprensa, 31/05/1952.
©Mario Pedrosa