IV Bienal de São Paulo
Ferreira Gullar
(...) O único
artista estrangeiro premiado, que ali se encontrava, era o espanhol Oteiza,
"melhor escultor estrangeiro". Oteiza é simpático e entusiasmado, fala com
calor: "A Bienal de São Paulo é a mais importante mostra internacional de hoje.
Está voltada para o futuro". Confessou-se grato pelo prêmio, dado a "um artista
obscuro, como eu", e prometeu mandar seus trabalhos de novo para o Brasil.
Depois da entrega dos prêmios, Franz Weissmann viu que seu envelope não tinha
cheque, mas apenas um cartão, onde se lia: 'melhor escultor estrangeiro'.
Weissmann recebera o prémio de Oteiza que, embora sendo do mesmo valor, será
pago diretamente em banco de Madri. Descobrimos Oteíza passeando sòzinho numa
das salas e lhe perguntamos pelo cheque: "Recebi o de outro - disse êle
calmamente - aias o valor é o mesmo". Mais tarde Weissmann e Oteiza se
encontravam e acertavam as coisas. (...)
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OTEIZA, WEISSMANN, BARA -
Para quem não tenha nenhuma iniciação no problema da escultura moderna, um
escultor como Oteiza (ou outro qualquer construtor de formas abstratas) deve
oferecer, em suas obras, especial dificuldade. O visitante inexperiente se
deterá diante daqueles "pedaços" de ferro ou de pedra procurando talvez
identificá-lo com alguma coisa conhecida... Serão pedaços do Sputnik?, pensará
para fugir ao problema: ou então sairá dali convicto de que o escultor escondeu
de tal maneira a forma verdadeira das figuras, que terminou criando uma coisa
incompreensível. .. O que êsse visitante dificilmente pensará é que o escultor
não está "escondendo" nada e que não há em seus trabalhos nenhum enigma dessa
ordem a resolver. Êle quer mostrar exatamente o que está mostrando: formas e
espaço.
Mas dizer que Oteiza ou Weissmann (ou Bill ou Hadi Bara) mostram formas e espaço
é ajudar muito pouco a quem, de escultura, conhece alguns bustos de praça
pública e a fotografia de algum trabalho renascentista. É melhor esclarecer
nosso visitante que o busto da praça não é pròpriamente escultura e que Miguel
Angelo não queria apenas fazer em pedra uma pessoa; igualzinha a outra de carne
e osso. Para um artista, qualquer que êle seja, as formas possuem independência
e êle sempre procura mostrá-la como um todo, uma coisa válida por si: muito
antes de querer esculpir um rosto angelical, umas mãos delicadas, umas pernas
esbeltas, o artista quer reunir todos êsses detalhes numa forma geral que
ultrapassa o campo da simples semelhança e se impõe como uma forma nova, nunca
vista antes.
Ora, se se diz isso de Miguel Angelo (ou de outro escultor figurativo qualquer),
já pode o leitor perceber que a diferença entre o escultor de hoje e o do
passado não é tão absurda quanto êle pensava: isto é, Oteiza e Weissmann não são
tão "malucos" quanto podem parecer à primeira vista. Já um contato ficou
estabelecido: o escultor do passado e o de agora desejam ambos mostrar "formas".
Mas eu disse que Oteiza mostra formas e espaço. Pois bem, aqui está a maior
diferença entre êsses escultores: o escultor de hoje procura, além da forma,
mostrar o espaço. Desde que compreenda isso, o leigo que visita a sala especial
de Oteiza na IV Bienal já não verá, como antes, meros "pedaços" de ferro
soldados um no outro. É mesmo, em lugar de dar tanta importância ao fato de que
esses pedaços de metal não se parecem com nenhuma figura nem objeto conhecido,
procurará vê-los como as "demarcações" do espaço. Se nascesse no visitante uma
pergunta como esta: "se êle quer mostrar o espaço bastaria uma dessas esculturas
para dizer o que êle deseja, porque o espaço é um só" — aí então a resposta não
seria tão simples mas em compensação estaria bem mais perto do problema de
Oteiza e dos outros escultores do espaço.
Não, meu amigo, o espaço não é um só, a não ser para um conceito geral
semelhante àquele que afirma também que a água é uma só. Ora, todos nós sabemos
que, efetivamente para a nossa experiência real, a água do mar não é a mesma que
a água do filtro e a água do filtro não é a mesma água mineral ou a água morna
da banheira A experiência diária nos revela uma riqueza nas coisas, que a
generalização esconde. Assim acontece com o espaço, e com um pouco de atenção
você terminará vendo que não só o espaço não é o mesmo em cada uma das
esculturas de Oteiza como verá também que os vários espaços dessas esculturas
diferem essencialmente dos espaços que Weissmann revela em seus trabalhos. Sendo
capaz disso, você está apto a girar pela Bienal e a descobrir a riqueza dessa
nova linguagem visual da escultura moderna, que sobrepõe o espaço à massa, a
realidade clara e imponderável do "vazio" ao mistério antigo e fechado dos
blocos de pedra do passado, das formas fechadas de Miguel Angelo, por exemplo.
(...)
©Ferreira Gullar
Suplemento Dominical -
Jornal do Brasil 22/12/1957