Frederico Morais
Flor Nascendo, vôo, sol

Sábado, manhã de sol, Praça Alceu Amoroso Lima, na Universidade Cândido Mendes, centro do Rio de Janeiro. Uma porção de empregados, com seus uniformes de trabalho, lavava o pátio e, de tempos em tempos jogava jatos d'água na escultura de Franz Weissmann ali instalada, ou a percorria por dentro, com suas vassouras e rodos. Havia muita algazarra e alegria em torno daqueles dois "US" contrapostos e que parecem se equilibrar precariamente, contrastando, no vermelho vivíssimo, com a vetusta Igreja do Carmo, de um lado, e, de outro, com a lâmina de vidro negro do edifício moderníssimo que se projeta no espaço. Para o artista os elementos em "U" simbolizam o encontro ou a integração dos corpos discentes e docentes. Para mim, naquele momento, sua escultura pesando 11 toneladas, era uma flor nascendo, um pássaro alçando vôo, um sol.

Ainda no campus da Universidade, mas colocada no pequeno jardim que fica na esquina da rua da Assembleia com 1o de Março, há uma outra escultura pintada de preto fosco. Trata-se de um projeto de 1958, retomado em 83 noutra escala. Nasceu, como todas as outras obras, do seu período neoconcreto, de uma placa, da qual foi recortado e deslocado em diagonal um círculo que, por sua vez, sofre um corte. Para Weissmann, esta escultura de 7 toneladas simboliza a cerra sustentada pela força e geometria cósmicas. De fato, ela está ali bem plantada no pequeno jardim de esquina, um pouco inibida, é certo, no círculo que a contém. É austera e discreta. Mas, posta em confronto com a outra, que chamei de sol, porque festiva, participante e banhada de luz, esta outra, vivendo à sombra, reflexiva, é, para mim, lua. Sei que a lua, feminina, é sensual e mutável, porém, sendo mais noite que dia, mais sombra que luz, favorece a reflexão e pede uma contemplação mais quieta e demorada.

Entre as esculturas do sol e da lua, entre o habitar o corpo da escultura e sua contemplação, vivi, naquele sábado de sol, uma rica experiência estética. E concluí: a verdadeira vocação da escultura é o espaço urbano: a rua, o parque, a praça, o campus universitário. A escultura encarada como ponto de encontro. A rua não retira à escultura sua dignidade, nem diminui sua carga simbólica e reflexiva. Permite tanto a contemplação quanto a participação, estimula o silêncio e a festa. E será tanto mais vocacionalmente urbana e participante se for minimalista na forma, industrial nos materiais e na execução, avantajada no porte, pois assim será possível percorrê-la por dentro, e habitá-la como habitamos o silêncio ou as claras manhãs de sol, como habitamos a província, o bosque, o mar, enfim, como habitamos a poesia e o sonho.

A importância da arte pública é que ela não atende apenas às necessidades do artista, de seu ego, ela propõe um novo envolvimento da sociedade com a obra de arte. Ou, como diz John Beardsley, a arte em locais públicos representa, muitas vezes, uma conjunção volátil de sensibilidades pessoais do artista com as expectativas do público no contexto do espaço público.

Domingo, 11 horas, subúrbio de Ramos, num galpão próximo à Ciferal, indústria de carrocerias para ônibus. Levado por Franz Weissmann, vejo, numa espécie de foyer improvisado, depois de vencido um pesado portão, as esculturas recentíssimas que vai expor simultaneamente nas galerias Raquel Babenco em São Paulo e Thomas Cohn, no Rio. São peças vibrantes, de uma espacialidade generosa, cheias de uma energia nova, surpreendente para um artista de 70 anos. E não falo apenas da cor que explode e faz cantar suas esculturas, falo da própria forma.

Durante muito tempo, Weissmann torturou-se buscando o que seria, para ele, como para a maioria dos artistas construtivos, esse arquétipo da beleza pura, que é o quadrado (o cubo). Agora, em suas peças, percebo uma agitação nova, um expressionismo latente, torsões barrocas, tudo isso porque Weissmann decidiu inclinar suas esculturas e, sem abrir mão de seu classicismo, sugerir, visualmente, um equilíbrio precário. Encontro o artista menos amargo e depressivo. Talvez por concluir que, afinal, a pureza não exista, decidiu inclinar suas peças, como se quisesse animá-las da humana imperfeição. E tudo mudou. Abriu-se um sem fim de possibilidades e de expressões que estavam inibidas ou mesmo reprimidas.

Agora, ele parte de uma fita que vai dobrando aqui e ali, em distâncias e ângulos irregulares. Hoje, como antes, não há cálculo matemático, há, digamos assim, uma intuição calculada, uma emoção construída. O resultado são estruturas que serpenteiam pelo chão, torções que nos surpreendem com bruscas mudanças de rumo. Nas colunas, o principal é o mesmo, a fita sobe e desce ascendentes e descendentes. Surgem gretas e frestas. Suas esculturas não se mantêm mais quietas no seu lugar, querem partir, alegremente, em todas as direções. As vezes, sou nostálgico de seu classicismo anterior, severo, denso, dogmático, as superfícies nuas, a ferrugem, mas é impossível não se deixar envolver por essa alegria nova na criação atual de Weissmann. Nem de se apaixonar.

Nessa visita matinal de domingo, sinto de novo o impacto que tive há quase 20 anos, quando vi pela primeira vez o ateliê de Weissmann, então, no próprio interior da Ciferal. Vencida uma nova porta de aço, estou diante de seu galpão-ateliê. Na verdade — e não existe outra palavra — estou dentro de uma verdadeira usina de criação. Espalhados no chão, nas paredes, sobre mesas e banquetas, em estantes, vejo várias centenas de projetos, modelos, módulos, placas, colunas, torres, relevos, múltiplos, esculturas prontas, peças inconclusas ou desfeitas, ora maciças ou vazadas, ora amassadas ou perfuradas, algumas, muito antigas, construídas com gesso ou madeira, outras recentes, de alumínio, ferro ou aço, muitas ainda em sua cor natural, outras recentes, pintadas de vermelho, amarelo, azul, verde ou ocre. A cada passo encontro uma idéia nova, mesmo se desenvolvida há tanto tempo, fases inteiras, como aquela, dramática e magnífica, desenvolvida na Espanha, encontro, enfim, num único galpão, o que ele projetou ao longo de 40 anos de criação. Encontro um pensamento visual, identifico a busca de uma verdade, de uma coerência interna para sua obra. Enfim, tenho diante de mim, amontoado, o mais extraordinário arquivo de formas deste país, referências ou matrizes para quase tudo o que se fez, e ainda se faz, em décadas de esculturas no Brasil.

O primeiro pensamento que me ocorre: é preciso expor num museu esta usina de criação, tal qual a vejo agora, as idéias nascendo ali, virtualidade pura. Logo me ocorre outra idéia: este acervo deveria ser preservado —quase me ocorreu dizer, tombado — para servir aos jovens artistas e estudantes de arte deste país como laboratório permanente de criação, como foro de debates escultóricos ou mesmo como ateliê coletivo. O material ali existente deveria ser documentado, fotografado, analisado e, em seguida, colocado à disposição da comunidade artística e do público. Não sei se isto é possível ou viável, mas tremo só de pensar que isto tudo, um dia, possa desaparecer — tantos foram os roubos e violências de que Weissmann foi vítima em sua atribulada carreira; tantos foram os incêndios a destruir nossos acervos de arte; tanta a incúria, o amadorismo e a arrogância de nossos dirigentes culturais.

Neste sentido, aliás, é perfeitamente justa a homenagem que Weissmann presta, por ocasião de suas duas exposições, ao seu irmão Fritz Weissmann, criador da Ciferal, porque, durante mais de 30 anos, ele realizou ali, na empresa, suas esculturas de pequeno e grande porte. Como se sabe, o escultor necessita, para criar, espaços amplos, operários competentes, maquinaria sofisticada e material caro, produzido pela indústria, o que torna quase impossível a criação escultórica no Brasil. Por isso foi importante, para a escultura brasileira, o apoio que a Ciferal deu a Franz Weissmann. Impedido, pelo síndico, de continuar freqüentando as oficinas da empresa, mesmo depois de vencida a crise falimentar, Weissmann, pela primeira vez, realizou suas esculturas em outro local, isto é, na Indústria Módulo, em Contagem, Minas Gerais, aumentando os custos e tornando seu trabalho mais penoso e difícil.

Tremo e sonho. Enquanto caminhávamos pelo galpão, neste labirinto de obras e idéias, a imaginação corria a mil. Vivemos, em pouco mais de uma hora, belas utopias. Se tantas esculturas de Weissmann, hoje, parecem desejar alçar vôo, levitar, flutuar no espaço, porque não concretizar este sonho por uma via tecnológica qualquer? E não apenas esculturas suspensas no ar, mas também infinitas, tanto em altura como em extensão. Do Zigurat ao "World Trade Center", as torres sempre fizeram parte do sonho do homem. Pirâmides, catedrais, as torres de Piza e Eiffel, obeliscos ou, para ficar apenas no campo da arte, a "Merzbau" de Schwitters, a coluna inteira de Brancusi, as torres de Goeritz, do México, ou de Villamizar, na Colômbia, esta necessidade de verticalização — "escolástica de pedra", como disse Worringer das catedrais góticas — podem ser fruto da megalomania ou da vaidade do homem, mas são, também, uma intrínseca necessidade metafísica do artista. Imaginamos também esculturas cobrindo vastas extensões territoriais, até mesmo países e continentes, como as de Freundelich e Goeritz, cortando, como uma via de fraternidade artística, o Continente europeu e o México. Todo escultor já imaginou, um dia, construir a maior escultura do mundo, fazer do mundo uma enorme escultura habitável. O artista sempre foi um construtor de utopias.

Saí do ateliê de Weissmann, em Ramos, cheio de idéias e sentimentos. Duas horas depois, em seu apartamento em Ipanema, encontro, em escala menor, a mesma usina criativa, novas dezenas de projetos e, sobre uma pequena mesa, os instrumentos de trabalho do artista, projetos em andamento.

Weissmann não desenha nem faz esboços gráficos que antecedem a escultura. Limita-se a fazer pequenos modelos de papel, em seguida, recorta suas formas em folhas de metal, em várias escalas. Ele não parte do conceito para chegar à forma. Faz ensaios sucessivos. Se a forma é objetivo do escultor, esta nasce de suas mãos. É na palma da mão, ventre ou receptáculo, que o escultor apreende o vazio e lhe dá sentido. Dar sentido ao vazio é esculpir. Henri Focillon em seu "Elogio da Mão" diz "é a ação da mão que define os vazios do espaço, sem a mão não haveria geometria, ela toca, apalpa, calcula o peso, mede o espaço, modula a fluidez do ar para prefigurar uma forma".

Há um conceito em filosofia, o de amanualidade, que diz que o mundo é dado por aquilo que está à mão, conhecemos aquilo que tocamos. 0 nascimento da terceira dimensão, isto é, o surgimento do vazio, é a proposta original do neoconcretismo. A mão apalpa, e sente o vazio, deixando fluir nos dedos, como se fosse um pensamento vago ou fugidio, um espaço novo, um movimento que o artista vai deter, silêncio suspendido, grito contido. Para Suzanne Langer, a obra de arte é um espaço puramente virtual, e esta virtualidade é seu princípio cardial. A escultura de Weissmann é isso: formas virtuais que aspiram nascer, promessa de vida.

Nesta fase inicial, em que a mão tateia e olfateia mundos novos e imprevistos, prestes a nascer, a cor nunca entra. É só vazio — e silêncio. A cor só vem depois, para fazer cantar e vibrar o espaço.

É certo que nenhum artista parte do nada, ele cria sua própria tradição, há a História da Arte, a geometria, que é seu instrumento, não a sua meta, mas é preciso eliminar o supérfluo, buscar a essência, sem chegar, porém, a esterilidade. É preciso compreender o momento de deter a busca, o momento em que a obra alcança sua maior precisão, o cume do cone. Porém, mesmo pronta, a obra não se esgota, é gênese permanente. Artista construtivo, de Weissmann a escultura não é nem discursiva nem narrativa, ela vive no presente, por isto está sendo construída o tempo todo pelo espectador.
 

©Frederico Morais - Revista Módulo - edição 86 - Julho 1985