A usina criativa de
Franz Weissmann
Frederico Morais
1
A imagem que quero guardar de Franz Weissmann, hoje com 80 anos, é a
de um homem quieto, que vive calado no seu canto, como se estivesse
sempre a ruminar pensamentos e obras. Eu o conheci ainda em Belo
Horizonte, nos anos 50, e desde então não mudou sua maneira de ser.
Silencioso, mesmo quando se dispõe a ir a um vernissage ou a uma
reunião de amigos. De vez em quando, nessas ocasiões, se provocado,
murmura algum comentário sobre arte, para logo em seguida se fechar
em seu mutismo. Mas não é arrogante nem antipático nesse seu jeito
de ser. Ao contrário. Crítico severo de seu trabalho, disse-me certa
vez: "É preciso beber o fel até a última gota", como que a indicar
que a arte é mais sofrimento do que prazer.
2
Ver o artista em seu ateliê, trabalhando, é ver a obra germinando,
nascendo entre indecisões e dúvidas, entre avanços e recuos, entre o
pânico de ser e a entrega. Mas este momento, a epifania da obra, seu
desabrochar definitivo, quase sempre escapa ao crítico ou
historiador de arte. Preocupados com a inserção da obra de arte no
meio social e no circuito cultural, dão pouca importância à
fenomenologia do ato criador. Isto é, não valorizam tudo aquilo que
ocorre no ateliê durante o processo criador: movimentos, silêncios,
pausas, arfares, o modo como o artista se posiciona diante da tela,
do papel, da prancheta, a gestualidade específica de cada ofício ou
técnica. O local onde o artista instala seu ateliê, a iluminação, os
ruídos, o modo como organiza seu espaço e o tempo, como distribui
seus materiais e instrumentos de trabalho, tudo isso repercute, às
vezes decisivamente, no resultado final da obra. Afinal, uma obra de
arte não é um desenho técnico, uma fria equação matemática, um
teorema, puro conceito. Ela nunca é prioritariamente um produto
acabado, pronto para ser embalado e vendido. Uma obra de arte é,
antes de tudo, emoção e mistério: é uma espera, um processo que não
se esgota nunca, um fluxo. É arte e é vida.
Ter visitado o ateliê de Weissmann, em Ramos, Zona Norte do Rio de
janeiro, apenas alguns meses depois que aqui cheguei, por volta de
1966, foi para mim uma experiência crucial. Artista que sempre lidou
com materiais e tecnologias industriais - ferro, aço, madeira,
alumínio, guindastes etc. -, foi com naturalidade que Weissmann
instalou seu ateliê no interior da fábrica de carrocerias de ônibus
Ciferal. Apesar do barulho infernal, sentia-se bem circulando entre
máquinas e detritos industriais, vendo beleza e poesia onde outros
costumam ver apenas utilidade e lucro. Aliás, é preciso fazer o
elogio dessa empresa, pois o apoio que o artista teve da parte de
seus dirigentes foi fundamental ao desenvolvimento de sua obra. De
fato, durante várias décadas, pôde usar material, equipamento e
mão-de-obra operária para realizar ali a maioria de suas peças mais
importantes, várias delas premiadas.
Nem sempre, porém, as coisas lhe foram favoráveis. Várias esculturas
de sua fase inicial, figurativa, e outras abstratas e concretas
foram totalmente destruídas no final dos anos 50, a mando de um
delegado de polícia, que queria transformar seu ateliê-sala de aula
no porão da Escola Guignard, na capital mineira, em depósito de
presos. Um síndico desavisado e insensível jogou suas esculturas num
galinheiro. Outras peças se deterioram, guardadas em caixotes, após
terem sido expostas na Europa, devido à incúria da burocracia
governamental. Desta sina não escapou sequer seu Monumento à
liberdade de expressão do pensamento, implantado na Quinta da Boa
Vista, e mandado derrubar, oito anos depois, pela antiga SURSAN, à
época do governo Carlos Lacerda.
Desde aquela primeira visita ao ateliê de Weissmann, há vinte e oito
anos, cobro do artista uma exposição ampla de sua obra, mas que não
se limite a mostrar as obras acabadas, hoje integrando coleções
públicas e privadas ou enriquecendo praças e jardins do Brasil. Uma
exposição que inclua também seus projetos, esboços, estudos,
protótipos, tudo aquilo que, sendo ainda idéias, iluminações,
intuições, aquelas "pequenas sensações" de que falava Cézanne e que
nele são vivências espaciais, de forma e movimento, revele seus
mecanismos de criação escultórica, a organicidade das idéias que
nascem, renascem e se renovam até chegar à obra definitiva.
Há já algum tempo, Weissmann transferiu seu ateliê do interior da
indústria de carrocerias para um galpão contíguo. Contudo, o impacto
de quem o visita não é menor. Mais organizado e limpo, continua
sendo o que sempre foi: uma verdadeira usina de criação, o mais
extraordinário acervo ou arquivo de formas escultóricas do país,
referência para quase tudo o que se fez e ainda se fará nas próximas
décadas em matéria de arte construtiva. Em relação à própria
trajetória do artista, está tudo ali: obras figurativas que remetem
ao seu aprendizado com Zamoyski, nos anos 40, que falam de sua
participação no Grupo Frente (1954) e nos movimentos concreto (1956)
e neoconcreto (1959), colunas, cubos, torres, estruturas gestálticas
e modulares, múltiplos, obras permutáveis, canaletas, cantoneiras,
monumentos e fitas realizados nos mais diversos materiais - arame,
alumínio, ferro, aço, madeira, - e em diferentes escalas e versões,
além de desenhos, pinturas e chapas de zinco de sua fase espanhola
(Madri e Irun), relevos e colagens com materiais heteróclitos,
formando um caudal inesgotável de idéias e propostas sem igual no
Brasil.
Por isso tenho defendido, desde muito tempo, a exposição desse
ateliê-usina de criação, tal como está organizado, num dos museus ou
instituições culturais da cidade. E, feito isto, preservá-lo,
através do tombamento pelo governo brasileiro, abrindo-o em seguida
à visitação pública e, principalmente, aos estudantes de arte e a
jovens artistas, que encontrarão ali um laboratório permanente de
criação escultórica. Da mesma forma, algum empresário mais lúcido
poderia patrocinar a edição de séries de múltiplos, transformando em
protótipos alguns dos projetos que se encontram guardados em
estantes, armários, caixotes, fixados nas paredes, no teto etc.
3
Weissmann não desenha nem faz esboços gráficos para realizar suas
esculturas. Começa com pequenos modelos de papelão. Faz ensaios
sucessivos: corta, dobra, separa, junta, repete, torce, experimenta
diversas escalas, às vezes troca, numa segunda etapa, o papelão por
outro material, mais rígido, abandona o projeto, insatisfeito,
inicia outro, mais outro, retoma o antigo até encontrar a forma
ideal quando, então, prepara o desenho técnico, para execução, já
considerando o material definitivo a ser empregado e a adequação da
peça ao contexto arquitetônico ou urbano, quando se trata de obra
pública. Como lembrava Gullar, em 1962, "suas idéias nascem
diretamente do trabalho: a teoria não encontra campo para se
formular". Ou seja, ele não parte de um conceito abstrato para
alcançar a forma. No seu processo criador, mais que o olho é a mão
que sente o espaço, a relação de cheios e vazios, de tensão e
repouso. Olhar-tátil. A geometria é apenas uma ferramenta que o
artista usa para se expressar, mas não se deixa dominar por ela.
Nessa fase inicial, em que a mão apalpa, tateia e quase diria, como
Focillon, olfateia espaços que estão prestes a nascer, a cor não
entra. Ele apenas deixa fluir, entre os dedos, como se fossem
sensações fugidias, um espaço novo, um movimento que procura deter.
E assim como não existe um desenho prévio, sua obra não é mera
ilustração de uma teoria. É certo que o artista nunca parte do nada.
Cada gesto já nasce impregnado de vida, de experiências acumuladas,
está imerso na história da arte. Como demonstrou Pierre Francastel,
"o nascimento ou o declínio de um determinado espaço plástico está
ligado ao nascimento e ao declínio de um determinado estado de
civilização". Um estilo de arte, portanto, é um fato estético e
social, seja a minimal art ou o barroco.
Artista construtivo, o processo criador de Weissmann, lento e
demorado, meticuloso, consiste em buscar o essencial de cada forma,
o "mais no menos", mas sem nunca chegar à aridez ou à esterilidade
inventiva. Sua escultura não é narrativa ou descritiva de fatos
passados: alimenta-se do presente. Mas, para Weissmann, viver o
presente não significa imiscuir-se nas circunstâncias do cotidiano,
é captar o que há de permanente e estável em cada momento ou
situação. Suas esculturas revelam uma grande leveza e frescura
interiores, sem deixarem de ser sólidas e estáveis. São, ao mesmo
tempo, muito simples e muito complexas. E mesmo sendo, como criador,
um intuitivo, sua obra revela um comportamento sistêmico, havendo
uma lógica interna que une trabalhos de diferentes épocas e fases -
e é justamente essa lógica que vai caracterizar sua produção
escultórica como uma forma de pensamento - pensamento não-verbal.
4
Em sua fase concreta/neoconcreta, Weissmann atuou no sentido de
anular a presença do material, de torná-lo secundário ou acessório.
Para ele, então, o verdadeiro material não era o alumínio, o ferro
ou a madeira, mas o vazio.
Este vazio não era (não é), entretanto, ausência de massa. Não é um
buraco, o oco da forma. Weissmann não esculpe dentro da tradição,
isto é, não desbasta nem agrega, ele cria espaços, lida com
estruturas. Assim, o vazio neoconcreto é, na verdade, uma presença,
é um espaço que se cria, novo, surpreendente. É um silêncio que
subitamente grita e se faz ouvir. Na escultura figurativa, por seu
conteúdo narrativo, é mais difícil encontrar o vazio como tendo uma
expressão própria. Foi a partir da arte concreta que ganhou
autonomia, como se pode ver em Cubo vazado (1950/1951), que é a
primeira obra rigorosamente concreta criada no Brasil. Nessa obra o
vazio existe. E significa. E esta descoberta, que se renova no
espectador, provoca uma grande euforia. O caráter inovador da obra
era tão perturbador que desorientou o júri da 1a Bienal de São
Paulo, que acabou por recusá-la. Quatro anos depois, entretanto,
receberia, na mesma bienal, o prêmio de melhor escultor nacional.
O Cubo vazado (que na verdade deveria ser chamado de "cubo virtual")
é, de fato, uma obra inusitada pelo contraste que o artista criou
entre aquilo que, nela, é real, tem matéria, peso, contorno, que tem
tactilidade, enfim, e aquilo que é imaterial, impalpável, que é
virtualidade pura. Esta obra ajuda a esclarecer, definitivamente, a
diferença entre o simplesmente vazado (transpor a massa, ato
mecânico) e o vazio. Este é algo mais sutil: o espaço nasce, emerge,
desabrocha, manifesta-se virtualmente, mas, quando o percebemos,
impõe-se de tal maneira que não conseguimos mais esquecê-lo.
Estrutura linear, de 1954, pode ser vista como a versão linear do
Cubo vazado, sendo constituída de dois cubos virtuais, que se
interpenetram sem perder sua individualidade. Num dos cubos, a linha
está pintada de preto; no outro, de branco. É fácil para qualquer um
fazer a transposição visual entre as duas peças.
Durante muito tempo o vazio foi a matéria prima da escultura de
Weissmann, vale dizer, o real de sua escultura é o virtual, espaço
imaterial, que se renova continuamente, a cada deslocamento do
espectador - ou do fotógrafo. E vão surgindo, assim, nas suas
colunas e em obras como Três pontos, círculos, semicírculos, ovais,
hexágonos e losangos que se expandem ou se contraem, num contínuo
vir-a-ser ou desenhar de formas.
5
Dentro, o vazio. Do lado de fora, a sombra. Virtualidades. A maioria
das esculturas de Weissmann prescinde de base ou pedestal. Isso quer
dizer que se comunicam diretamente com o espaço, ou melhor, são
parte do espaço. São implantadas diretamente no chão,
equilibrando-se às vezes num único ponto de apoio, numa única
aresta, e assim permanecem como que soltas no espaço, como se
quisessem alçar vôo ou pender para um dos seus lados, precariamente.
A parte da chapa que se recorta, o plano que se desloca, o corte que
divide sem separar, as formas em confronto ou diálogo e os vazios
geram um outro tipo de virtualidade: sombras. Que são parte do
significado da escultura. Ou melhor, são uma outra e a mesma
escultura. Desenhos no espaço: sombras na parede.
6
Contemplado com o Prêmio de Viagem ao Exterior no Salão Nacional de
Arte Moderna, em 1958, viajou no ano seguinte para a Europa. Mas
antes de se fixar na Espanha esteve no Japão e na índia. Sua estada
nesse último país teve enorme impacto no artista, deixando-o
deprimido por muito tempo. Instintivamente, começou a cobrir folhas
e folhas de papel com uma linha infindável, que se enroscava,
formando labirintos. A seguir passou a amassar chapas de zinco com a
ajuda de martelos, porretes, soquetes e até da própria mão, vestida
com luva de boxe ou mesmo nua. Foi um sofrido e áspero diálogo com a
matéria. Essa fase, ainda pouco conhecida do grande público, precisa
urgentemente ser resgatada pela crítica, pois ela ajuda também a
compreender melhor a personalidade de Weissmann. É um momento de
grande depressão do artista, eu diria mesmo doloroso, mas que,
ironicamente, proporcionou obras magníficas.
Weissmann permaneceu quase seis anos fora do Brasil. Saíra daqui
concreto, um rigoroso criador de estruturas geométricas, de sentido
classicizante, e retornara gótico-expressionista. O poeta João
Cabral de Melo Neto, comentando essas obras européias, expostas em
Madri, disse que eram "uma explosão no edifício de uma escultura
cuja função fora sempre fazer da pedra cristal, no método de um
escultor cujo gosto foi sempre o perfil claro e solar". Mário
Pedrosa, vendo essas mesmas obras na exposição que o artista
realizou na Petite Galerie, em 1965, logo após seu retorno ao
Brasil, observou que "se os desenhos lhe são um diálogo entre a
linha e a luz, as placas em relevo são um diálogo entre o traço e o
golpe - a luz".
De minha parte, aproveitei-me dessas obras para formular uma
interpretação da arte brasileira quando posta em confronto com a
arte européia. No Brasil, onde tudo está por fazer, por trabalhar
e construir, parecia natural que Weissmann assumisse, plenamente,
sua vocação construtiva, criando obras marcadas pelo equilíbrio e a
contenção. Numa Europa saturada culturalmente, onde tudo lhe parecia
concluído, acabado, natural que sua arte expressasse pessimismo, que
buscasse uma aproximação daquele "nada total" de que falava Mathieu
em seu manifesto tachista. Era preciso destrabalhar, desconstruir,
desmanchar, para só então dar início à reconstrução do universo.
No entanto, esses desenhos e placas, vistos mais atentamente,
sugerem um outro tipo de organização: seriam uma tentativa mais
-sutil de apreensão da luz e, através dela, de estruturação de
espaços. Como se, ao enroscar a linha de modo incessante, ou ferir
estoicamente a chapa e a si próprio, estivesse buscando, dentro do
caos, uma outra ordem, uma outra estrutura. Como se no ponto mais
fundo do poço em que mergulhara houvesse um espaço de luz clara,
aquele céu de Canaletto ou Tiepolo do qual falou Pedrosa a propósito
de suas chapas: "martelou-as como um ser sensível. Sob seus golpes,
o zinco vira céu". Nesse sentido, esses trabalhos europeus estariam
mais próximos da espiritualidade de um Tobey, com suas "escrituras
brancas", dos drippings de Pollock, da espacialidade de Fontana, da
cosmicidade dos "mais e menos" de Mondrian e bem longe da
superficialidade decorativa do tachismo. Pouco a pouco, Weissmann
reencontra sua ambiência brasileira e sua escultura novamente busca
a via construtiva. O silêncio substitui o grito, a alegria supera a
raiva, o quadrado ressurge. A ordem está refeita.
7
Artista construtivo, Weissmann encontrou no quadrado o arquétipo da
beleza pura - o ângulo reto como bússola a guiar sua criação.
Arrancou da matéria bruta o cubo virtual: o vazio, que é silêncio.
Fez dele uma realidade. O auge dessa busca de uma beleza pura, tendo
como base o quadrado, é a escultura~ instalação que apresentou na
mostra "Objeto e participação", que organizei para o Palácio das
Artes, em Belo Horizonte, 1970, denominada Labirinto. Uma outra
versão desse labirinto e mais três peças igualmente realizadas com
perfis de alumínio, todas dentro do mesmo espírito purista,
constituíram o que Weissmann enviou à Bienal de Veneza, em 1972.
Elas são o ápice de seu conceito de escultura como um desenho no
espaço, mas consagraram, também, um outro conceito do artista: a
escultura habitável. De fato, Weissmann emprega o mais puro desenho
geométrico para erguer, nos giardini de Veneza, uma
escultura-arquitetura que é puro espaço, templo da ordem e do
silêncio, a casa ideal do artista, que é ao mesmo tempo a mais
perfeita homenagem ao quadrado, a mais límpida neoplástica (jogo
sutilíssimo de simetrias e assimetrias), branco sobre branco
malevitchiano, o vazio dentro do vazio (inundando nossos corações de
alegria). Essas esculturas-arquiteturas abrigam todas as
idealizações de uma ordem perfeita, transparente, luminosa, solar: o
Partenon grego, a arquitetura modular dos japoneses, o urbanismo
renascentista, o classicismo arquitetõnico do século XX, qualquer
uma das cidades invisíveis de Italo Calvino, uma cantata de Bach, a
Bauhaus, Gropius, Mies Van der Rohe, Albers, Mondrian, Le Corbusier,
Malevitch, Goeritz, Villamizar, Sol Lewitt etc.
8
Mas em 1971, na Bienal de Escultura ao Ar Livre de Antuérpia, na
Bélgica, Weissmann já antecipara a "destruição" desse templo da
ordem e da perfeição, que seria revisto no ano seguinte, em Veneza,
distribuindo, sobre o extenso gramado em que se desdobra a mostra,
módulos de madeira pintados, recobertos por fiberglass. Alguns
módulos ainda se erguem verticalmente, outros parecem empilhados,
não arbitrariamente, é claro, mas deixando a sensação de que
poderiam ser manipulados ludicamente, não fossem tão grandes e
pesados. Mas quando tombam sobre a grama dois quadrados, o gesto
ganha uma dimensão simbólica, sinalizando que, a partir daí, sua
escultura mudaria de rumo. O que de fato ocorre. Uma das novidades é
a cor; outra, a presença das diagonais, como iremos ver.
9
Vivendo uma época industrial, com seu ateliê instalado na Ciferal,
lidando com materiais e técnicas correspondentes, Weissmann acaba
por absorver, em seu trabalho, parte desse "conteúdo" industrial. Em
suas esculturas de grande porte, públicas, esse substrato industrial
é quase um estilo. Seta, escultura de 1979, instalada defronte de
uma revendedora da Mercedes-Benz, em Nova Iguaçu, reafirma essa
origem, seja pelo vigor e solidez da estrutura, seja pelo emprego
ostensivo dos rebites, à maneira de Negret, com o objetivo claro de
enfatizar a idéia de montagem industrial, oferecendo ao espectador a
visão simultânea do todo e das partes que a compõem. No Cubo, do
mesmo ano, implantado à entrada do Edifício Biaggi, na Avenida
Paulista, em São Paulo, volta a empregar parafusos.
Em outras obras, realizadas a partir da segunda metade da década de
70, emprega soluções semelhantes a cantoneiras e canaletas, afins
das estruturas industriais e urbanas (pontes, plataformas,
guindastes, trilhos), mas que ele transforma em "flores de aço",
como as que criou, com escalas e complexidades diversas, para o
Parque da Catacumba, no Rio de janeiro, em 1979, para o Centro
Administrativo do Banco Itaú (1986) e para o Memorial da América
Latina (1989), ambas em São Paulo.
Mais, nas colunas neoconcretas, criadas a partir de 1957, faz uso da
sucata industrial, mas não como crítica ao desperdício da sociedade
de consumo, segundo o esquema acumulativo e crítico da pop-art ou da
funk-art, mas como elementos de uma estrutura modular, permanecendo,
portanto, no âmbito da arte construtiva. Sua visão era, então,
qualitativa: transformar o caos em cosmo. As sobras industriais
permitiram a Weissmann criar estruturas gestálticas que "ilustram"
seu conceito inicial da escultura como desenho no espaço. Mas esse
desenho só se realiza com a participação do espectador, isto é, suas
colunas pedem que o espectador circule ao seu redor, pois só assim
ele poderá captar todas as suas virtualidades espaciais, todas as
suas possibilidades visuais - óticas e cinéticas.
A série de múltiplos que realizou na década de 80, por sua vez, se
inserem coerentemente na evolução de sua obra construtiva, cuja
lógica indicava uma aproximação à indústria, através da
serialização. Porém, os múltiplos de Weissmann têm um mérito maior
que a pretendida democratização da arte: eles provam, de modo cabal,
que tamanho não é documento, isto é, a monumentalidade é algo
implícito à obra. Como demonstrou Bachelard em sua Poética do
espaço, miniaturas podem ser enormes quando vistas de seu interior e
sua leitura exige tempo e paciência. O pequeno não é necessariamente
intimista, da mesma maneira como o porte de uma obra ou sua
localização no espaço urbano não a tornam menos subjetiva.
Trabalhando nos extremos do grande e do pequeno, da rua e da casa,
Weissmann é sempre o mesmo artista. Seus múltiplos não visam
socializar a posse da obra, enquanto objeto de consumo, mas o acesso
a noções como equilíbrio, beleza, pureza formal, ludicidade. Da
mesma maneira, ao transformar chapas de aço em "flores tropicais",
ele atua na contramão da funcionalidade e do pragmatismo da
sociedade industrial.
10
O vazio e a sombra (virtualidades contrapostas: o não-ser e o
duplo), a repetição (estrutura modular), a permutação, o corte, a
dobra e a torção estão entre os elementos que compõem a poética
weissmanniana. De todos esses elementos, o mais fundamental parece
ser a torção, que está presente ao longo de quase toda a sua
criação, apesar de nem sempre percebida. Mais que o corte, mais que
a dobra, ela é a essência de sua operação visual. Antes da torção
vem o corte. Este nem sempre separa - apenas fende. É sempre um ato
radical, mas ainda não basta, ou melhor, não se basta. Precisa da
torção que provoca o deslocamento e cria a terceira dimensão. A
dobra apenas estanca a violência do corte. A torção também não
encerra o processo iniciado com o corte e que prossegue na dobra,
mas as tensões são mais fortes e persistentes.
Weissmann não torce volumes, planos contínuos, massas. Não torce nem
retorce torsos humanos, expressionisticamente. Nem colunas,
barrocamente. Nem volumes, borrominicamente. Torce vazios, por
absurda que possa parecer essa afirmação. Torce o que ainda não
existe, virtualidades, atuando nos interstícios dos planos, no
espaço.
É certo que a torre apresentada na Bienal de São Paulo, em 1967,
cria visualmente torções que fazem lembrar a coluna torsa do
baldaquino de Roma. Um pouco desse efeito ótico (barroco =
optical-art) ainda persiste na segunda coluna neoconcreta, de 1980,
que é algo brancusiana. Torcedelas é o que faz: o suficiente para
provocar o deslocamento da forma, mudar de rumo, desviar, criar uma
desarticulação momentânea da estrutura cúbica, gerando surpresas,
criar um momento de tensão. Algumas torções nem chegam a completar a
primeira volta sobre si mesmas, nunca chegam ao extremo da espiral.
Sugerem, insinuam, criam latências. E muitas vezes, como nas colunas
neoconcretas ou em obras como Três pontos, é o espectador que torce
o olhar, fazendo rodeio em torno da peça, torcicolando.
A introdução de um novo elemento em seu vocabulário plástico, a
fita, que vem depois do cubo, da chapa, da coluna, da torre, da
cantoneira e da canaleta, estimula mais ainda o emprego da torção,
tencionando o espaço e dinamizando a estrutura. A palavra "fita",
empregada por Weissmann, deve ser entendida em seu sentido literal.
Trata-se de uma longa e estreita superfície de aço, delgada, como se
fossem tiras de papel ou tecido, e que ele faz subir e descer uma,
duas, três vezes em suas colunas, ou que dobra, aqui e ali, em
distâncias e ângulos irregulares e que serpeiam ou parecem
ziguezaguear no chão, como uma serpente.
Na Coluna de duas fitas (1980/1985), a torção está localizada no
extremo inferior de uma das fitas/planos, mas o impacto tensionante
se estende por toda a estrutura vertical, revigorando o espaço. Essa
pequena e quase discreta torção ao pé da coluna não apenas cria um
espaço imprevisto, como reforça, no olhar do espectador, o seu
caráter ascensional. Um frisson percorre toda a peça, criando uma
formidável fonte de energia espacial. Noutras colunas, a torção se
dá no centro da peça: o quadrado resultante distribui simetricamente
a tensão criada.
A Grande fita vermelha, de 1985, multiplica o número de torções,
isto é, de pontos de tensão, marcando o ritmo dinâmico da peça. A
escultura rasteja, serpenteia e dança, surpreendendo com suas
bruscas mudanças de percurso, pedindo ao espectador que também
circule em torno dela, que faça festa. Ou fita. Sabe-se que Calder
teve a idéia de seus móbiles vendo os quadros de Mondrian. Na base
da obra de ambos está a linha reta (em Calder é o fio de prumo).
Calder percebera que a reta não é senão a curva colocada em sua
tensão máxima. A Grande fita vermelha faz lembrar uma estrutura
sanfonada que pode ser alongada ou reduzida conforme a maior ou
menor pressão das mãos. Na sua origem, portanto, é apenas uma reta,
que a partir de uma sucessão ritmada de dobras-torções quase se faz
curva: Bernini serpenteado na grama. Mais à frente, a torção
desarticula o cubo, de um faz dois (cubos virtuais): xifópagos.
Toda torção guarda a memória do corpo: torso, torcicolo, torcer,
dobrar-se, vergar-se. As estruturas torsas de Weissmann também. As
mãos do artista estão ali, subjacentemente. Vergando, inclinando,
encurvando, encaracolando, labirintizando ou desarticulando cubos,
formas em u, canaletas, cantoneiras, fitas ou colunas. A escultura
que o espectador tem diante de si guarda, íntegro, o ato criador do
artista, gênese permanente.
11
Muitas vezes, o crítico destaca na obra do artista - e não se pode
dizer que o processo é inconsciente - as suas próprias qualidades ou
idiossincrasias, aquilo que ele pensa ou deseja ver/ser. Vale dizer,
o crítico também projeta seus desejos na obra e na carreira do
artista. Síndrome de Pigmalião.
Ao tentar decifrar o mistério da obra, decodificá-la, o crítico
acaba por des-velar aquilo que foi velado pelo artista. Mas à medida
que agrega valores, torna a velar a obra, que em cada leitura se faz
outra. A história de uma obra é, assim, um jogo infindável de
veladuras e des-veladuras, de revelações parciais. Voyeur amoroso,
tem os olhos pregados na obra, quer avançar mais, ver de perto,
descobrir o que se esconde. Entretanto, precisa manter um certo
distanciamento, que é dimensionado pela própria história da arte,
pois ele deve perceber, na aventura de cada artista, aquilo que o
vincula à arte de seu tempo. Deve saber avançar e retroceder, apoiar
o artista e, ao mesmo tempo, manter a distância que seleciona,
hierarquiza e dá sentido de permanência à obra. Viver profundamente
a experiência de cada trabalho e acrescentar-lhe sua própria
experiência, de tal maneira que, passado o tempo, a obra guarde a
intuição criadora do artista e a percepção aguda do crítico.
O essencial, porém, é perceber que, na verdade, é sempre a obra, ela
mesma, que indica ao crítico a forma de sua abordagem. Essa é uma
das muitas lições que aprendi no convívio de mais de 30 anos com a
criação maior de Weissmann.
Num depoimento dado a Ferreira Gullar, em 1959, Weissmann afirmou:
"Em minha escultura não há sensualidade, minha escultura não
explode." De fato, sua escultura foi assim, ascética e austera,
durante pelo menos duas décadas. Até que um dia decidiu introduzir a
cor, argumentando que ela quebrava o silêncio da pureza geométrica,
unificando os planos e os elementos entre si, tornando-a cantante e
mais comunicativa. Creio que a primeira escultura colorida de
Weissmann foi Arapuca, de 1966, exposta na Bienal de São Paulo do
ano seguinte. À época não dei muita atenção ao fato. O que me
impressionara foram as dimensões da peça (cinco metros de altura) e
o emprego de módulos de madeira pintada, permitindo uma grande
liberdade de estrutura.
Quando a cor já se instalara irreversivelmente na obra de Weissmann,
afirmei, com certa arrogância, que o problema da escultura não
estava na cor, mas no espaço, acrescentando que a cor em nada
contribuíra para enriquecer o espaço em sua obra. Mas já então me
perguntava (perguntava aos meus leitores) se não estava exigindo do
artista um tipo de fidelidade que, na verdade, era minha, e não
dele. Ou por outra, eu não estaria agindo preconceituosamente ao
dizer que a cor é problema de pintura, tentando, assim, impedi-lo de
fazer o que considerava melhor e mais adequado à escultura?
Não posso negar, entretanto, que naqueles momentos sentia, como às
vezes ainda hoje sinto, a nostalgia da severidade de suas
superfícies nuas, ferruginosas, da austeridade do preto, do
ascetismo monástico de suas colunas, daquela espécie de calvinismo
artístico, que eliminava parte do prazer visual em nome de uma
essencialidade metafísica. Nessas recaídas nostálgicas imaginava-me
vendo o artista quieto no seu canto, ruminando pensamentos, obras,
como que assustado ou envergonhado com tanta agitação imprevista
trazida pela cor, protegendo-se dos espaços mais silenciosos de
antigas colunas.
Mas a cor veio e provou que na escultura ela tem uma capacidade de
irradiação muito maior do que na pintura. É que na rua, na sociedade
de consumo em que vivemos, em meio ao bombardeio visual dos meios de
comunicação massiva, a escultura, para sobreviver, precisa da cor,
quer o confronto. Dou a mão à palmatória: é impossível não se deixar
envolver por essa alegria nova que a cor trouxe à escultura de
Weissmann. Nem de se apaixonar. À introdução da cor correspondeu
maior liberdade de estrutura, com o aparecimento de uma
espacialidade generosa e aberta. Desde então nada mais deseja
aquietar-se em sua escultura, o artista deixou de reprimir ou inibir
o movimento. Forma e cor se abraçam. A forma canta, a cor baila e,
juntas, fazem a festa do olhar.
12
As esculturas de Weissmann já integram a paisagem de várias capitais
brasileiras e, por sua beleza altiva e vigorosa, vão se
transformando em marcos da cidadania, em signos urbanos. Elas podem
ser vistas em Belo Horizonte (Coluna linear, dos anos 70, medindo 15
metros, instalada na Minas Diesel, e o monumento-marco da comunidade
judaica na capital mineira), Brasília, São Paulo e no Rio de
janeiro.
Provavelmente poucos cariocas devem conhecer o nome do autor ou
jamais se preocuparam em identificá-lo, mas, com toda certeza, devem
guardar na memória, bem nítidas, algumas das esculturas de Weissmann
implantadas em diversos pontos da cidade. Uma delas está bem à
vista, defronte do prédio da IBM, em Botafogo: são duas formas em u,
interligadas por uma torção, mas sem romper a continuidade da fita.
Outra encima uma pequena colina, no Parque da Catacumba, junto à
Lagoa Rodrigo de Freitas, pintada de vermelho e sempre ameaçada de
desaparecer em meio ao verde das árvores. Uma das "cantoneiras"
premiadas no Panorama de Arte Atual Brasileira, em 1975, encontra-se
no jardim fronteiriço de um edifício residencial da Avenida Vieira
Souto. Bem perto dali, na mesma avenida, funcionando como uma
espécie de logotipo tridimensional da Casa de Cultura Laura Alvim,
há um outro belo exemplo da criação escultórica de Weissmann, tendo
o quadrado e a torção como "temas".
No campus da Universidade Cândido Mendes, na Praça XV, centro do Rio
de janeiro, Weissmann implantou duas esculturas, belas e fortes.
Estão datadas de 1984. Uma delas, em aço pintado de vermelho, com
seis metros de altura, é constituída de duas formas em u,
contrapostas, simbolizando, segundo o artista, a integração dos
corpos discente e docente. A segunda, em preto fosco, retoma um
projeto neoconcreto de 1957 - uma chapa da qual se arrancou um
círculo, o qual, após ser deslocado, sofre um corte que abre no
negro com que foi pintada uma nesga de luz. Tem quatro metros de
altura. A que se situa na praça interna é alegre e diurna, solar. A
outra, austera, noturna, fechada sobre si mesma, encontra-se num
pequeno jardim quase junto à rua. A primeira pede que a habitemos
alegremente. A segunda quer ser contemplada em silêncio, com vagar.
Foram denominadas pelo artista de Encontro e Terra. Eu as chamo de
esculturas do sol e da lua. Elas correspondem a dois momentos da
criação weissmanniana e pedem diferentes leituras.
Em São Paulo, suas peças estão localizadas nos jardins de escultura
da Fundação Armando Álvares Penteado, na Praça da Sé (Diálogo), na
praça cívica do Memorial da América Latina (Grande flor tropical:
quase um ser vivo, prestes a caminhar) e no Centro Administrativo do
Banco Itaú. Aqui são duas peças: uma delas é quase uma flor
aquática: suas formas viris se des-mancham, projetadas no espelho
d'água. A outra, medindo 15 metros, é como indica seu título, um
Portal, no qual se destaca, em primeiro plano, uma grande lâmina de
concreto pintado de amarelo, tendo como contraponto uma lâmina
menor, deitada, azul, e uma coluna de aço 'corten'. Todos esses
elementos, e mais uma espécie de trilho horizontal, localizado no
ponto mais alto da peça, estão solidamente integrados,
proporcionando uma rica espacialidade no jogo de verticais e
horizontais.
Num dos seus textos utópicos dos anos 60, Mário Pedrosa fala de uma
"revolução da sensibilidade", que seria a grande revolução, a mais
profunda e permanente. Mas alertava: "não serão os políticos, mesmo
os atualmente mais radicais, nem os burocratas do Estado que irão
realizá-la". Se essa revolução se realizar, será comandada por
artistas do porte de Weissmann. Com suas esculturas urbanas, ele não
está educando o olhar do público apenas no âmbito do universo
artístico. Eu o vejo reeducando o olhar do público em relação a todo
meio formal da cidade. Ver e compreender uma escultura de Weissmann
significa ver e compreender a beleza de outras estruturas existentes
na cidade, aquelas naturais, de que a paisagem do Rio é tão farta,
como aquelas que estão sendo construídas pela indústria e pela
tecnologia. E principalmente significa compreender aquelas
estruturas, aparentemente informes e imprecisas, mas que são
permanentes e absolutamente necessárias à vida social e aos
indivíduos: democracia, liberdade e beleza.
©Frederico
Morais
Revista Piracema, Nº 2, ano 2, 1994.